1 de fevereiro de 2009

Conversa Fiada

Sim. Feche a porta para o vento não entrar. Não queremos apanhar um resfriado, pois não? Então D. Cremelina, conte lá da vida. Que tem feito? Como estão os gatos? Eu cá vou andando, com a cabeça entre as orelhas como dizia o outro. Já me custa mexer as pernas e evito subir ao primeiro andar. Até já mandei mudar a cama para a sala, como pode ver, para não esforçar demasiado o corpo. Sim, tem razão. A idade não perdoa, ensinamento antigo. Esse nunca morre, ao contrário de nós que temos os dias contados desde que nascemos. Oh! Que indelicadeza da minha parte. Quero tomar um café D. Cremelina? Não? E um chá? Uns bolinhos? Como queira! E onde ia eu? Ah! Sim, é verdade. No passar do tempo. Esse que não perdoa. Corta-nos as asas ainda antes de começarmos a voar. Mas nem tudo é mau, D. Cremelina. Já lhe contei que ganhei no totoloto? Não! Não foi o grande prémio. Se tivesse sido esse a senhora já saberia. O mundo é alimentado por o burburinho da coscuvilhice. Não! Foi um prémio mais baixo, mas mesmo assim recompensador. Quanto? Quinhentos contos, ou dois mil e quinhentos euros como diz esta gente moderna. Por mim nunca me adaptei à mudança do dinheiro, D. Cremelina. A senhora sim? Eu não e continuo a jurar que o Travino da mercearia me engana e sempre enganou com as contas, desde que apareceu essa nova moeda. Mas voltando ao prémio, a minha nora é que o foi levantar. Ainda não sei o que fazer com ele. Cheguei a uma altura da vida em que tenho tudo quanto quero e preciso, e ninguém para partilhar. Ah, D. Cremelina! Como sinto falta do Gacerdo! Como ele ficaria feliz se cá estivesse! Comprava logo aquela mota tão bonita que admirava todos os dias, quando de manhãzinha ia à vila e passava em frente à montra do Sr. Licredo. Era o sonho dele! Mas lá foi, quando nosso senhor Jesus Cristo o chamou. Sou capaz de o depositar nas contas dos meus netos. Eles precisam mais que eu, estão a começar uma vida. Pode ser que ajude a pagar a Universidade à mais velha. Vai tirar Direito como o pai. É uma menina com cabeça aquela minha neta! O orgulho da família! E a alegria dela quando teve conhecimento de que entrara, nem imagina. O sorriso naquela carinha angelical, só me apeteceu chorar de alegria e dar-lhe um abraço. Merece aquela menina! Merece muito. E os pais dela estão muito felizes. O seu neto também deve estar quase a entrar, não é? Era pouco mais novo do que ela pelo que me lembro. Para o ano, diz a senhora? Pois, era o que eu pensava. Esta juventude tem muita sorte, sim. No nosso tempo era preciso ser rei no mundo para tirar um curso. Hoje qualquer um pode. É isso mesmo, D. Cremelina. A sociedade deu um grande pulo. Ainda me lembro da altura em que tivemos de deixar a escola para ir trabalhar para os campos. Ainda nem a quarta classe havíamos terminado. Bem, é como Deus quer! E estou eu para aqui a falar! Já deve estar farta de me ouvir. Então, diga-me lá D.Cremelina, o que a trouxe cá a tão tardia hora?

1 comentário:

João A. Ribeiro disse...

Nunca mais acabas o livro do GG Marquez!