"Aviso quem acaba de entrar.
O mínimo que se pode dizer de mim é que penso matar-me e levar alguém comigo.
Tenho esta costela altruísta, sou companheiro por natureza. Que querem? Gosto de partilhar.
Chega-te cá. Não tenhas medo. Não vês as grades? Estou preso, não te posso fazer mal. Não te consigo chegar.
Chamo-me Geraldo, quase vinte e quatro anos.
A sério, aproxima-te. Não digas a ninguém, mas tenho medo. E aqui não se pode mostrar medo. Medo até, do fácil que é, matar alguém, se estivermos dispostos a isso. É isso que me passa pela cabeça, não vejo luz ao fundo deste túnel. É tão fácil. Confessa lá que já pensaste nisso, se calha estares de neura.
Imagino que sigo pela estrada. Auto-estrada, anda-se mais depressa. Não sei o que será melhor, se um sol que fere a vista, céu azul, essas coisas limpas de que toda a gente gosta muito, ou um pavor cinzento preto, raios lá ao fundo, trovões a abanar o carro, uma catarata no vidro. Neste caso o problema é que posso não ver bem. E o que eu quero nesta situação é ver bem.
Imagino que me aproximo num repente, ponho-me mesmo atrás daqueles manos muito confiantes, montados num modelo de estreia, matrícula deste mês, um porradão de cavalos, uma merda no ouvido para atender o telefone, o casaco pendurado atrás, camisinha e gravatinha, a despacharem serviço, a atenderem muita chamada ao mesmo tempo, a dizerem a todos ao mesmo tempo
dá-me só um segundo não desligues dá-me só um segundo
um gajo igual a tantos outros que são iguais a tantos outros, que são afinal todos iguais e não se importam, que fazem aliás por serem iguais uns aos outros, e por serem todos iguais quem é que há-de dar pela falta dele, daqui a nada aparece outro igualzinho, e depois outro e assim por diante.
Manos que nascem do chão como cogumelos.
E é isto que pode fazer-me hesitar.
Porque não sei se me apetece levar comigo um bacano que podia ser outro qualquer, pode não ser uma ideia que deixe mossa, levar um destes, igualzinho ao de ontem e ao de amanhã.
Cogumelos. Trevo daninho que come a relva.
Vantagem: ninguém há-de dar pela falta dele.
Desvantagem: ninguém há-de dar pela falta dele.
Já viste como o medo nos dá para querer-mos magoar?
E a tentação de querer-mos foder um cogumelo destes. Colo-me atrás dele uns quilómetros, o gajo olha pelo retrovisor, pensa
tu queres ver este
ou então
passa lá pázinho não me chateies que tenho muita chamada para atender
o mais certo é reduzir, diz espera só um bocadinho e para a outra chamada em espera a mesma coisa, dá-me só um bocadinho para despachar aqui um esperto, mal ele sabe o que diz, despachar um esperto, mal ele sabe, por mais que acelere eu sempre atrás, a medir-lhe a nuca e os olhinhos no retrovisor, e o casaquinho a abanar por trás dele, para não se amachucar, pensado bem vai já este, atiro-me para o lado dele sem pisca, olho bem para ele, igualzinho ao que passou e ao que há-de passar, não há-de vir daqui mal ao mundo, altruísta eu, não sei se é esta a palavra mas gosto dela, uso-a aqui, gosto, sinto-me, enfim, até um gajo porreiro, porque me dou ao trabalho de estar sempre a pensar no contexto todo.
Uns bons metros ao lado dele, quero que ele me veja bem, quero vê-lo bem, nem sonha que eu estou a dizer
és tu, és já tu, vais tu e é já
sorrio-lhe?
se calhar sorrir é maldade a mais
então está bem, sorrio-lhe
aí vai um cogumelo, um tufo de trevos que anda a comer a relva, de onde veio este hão-de vir mais, olha para mim sem saber que é a última vez que oolha, é isto que quero, olha para mim e despede-te, pá, não digas à secretária é só um bocadinho já te atendo, não ponhas o sócio em espera que já não voltas.
Poder.
Agora.
Com os carros perfeitamente alinhados, ele sem saber se acelera para me fugir, se desacelera para me deixar passar.
Agora.
Sorrio. Não me ocorrem últimas palavras. Quero resolver isto antes daquela curva lá em cima. Aqui é bom, há um rio lá em baixo. Aperto o volante. Imagino que o volante é um pescoço.
Tudo para a direita. Dá tempo para lhe ver a cara.
E ele
Olha-me este. O que é isto. Então então. Ai meu Deus.
Agora é que vamos ver se é como dizem, se pela cabeça nos passa toda a vida num repente. Espero ir suficientemente depressa. Vou.
Nem tempo para travar. Ele agarra o volante, abre muito os olhos. Isso, cogumelo, olha bem. Eu agarro o volante como um pescoço, ele pensa que está a agarrar alguma coisa que o salve, a coisa que tem mais à mão. Não, rapaz, não é um pesadelo. É mesmo.
Agora.
Ou então."
Excerto de "Canário" de Rodrigo Guedes Carvalho
O mínimo que se pode dizer de mim é que penso matar-me e levar alguém comigo.
Tenho esta costela altruísta, sou companheiro por natureza. Que querem? Gosto de partilhar.
Chega-te cá. Não tenhas medo. Não vês as grades? Estou preso, não te posso fazer mal. Não te consigo chegar.
Chamo-me Geraldo, quase vinte e quatro anos.
A sério, aproxima-te. Não digas a ninguém, mas tenho medo. E aqui não se pode mostrar medo. Medo até, do fácil que é, matar alguém, se estivermos dispostos a isso. É isso que me passa pela cabeça, não vejo luz ao fundo deste túnel. É tão fácil. Confessa lá que já pensaste nisso, se calha estares de neura.
Imagino que sigo pela estrada. Auto-estrada, anda-se mais depressa. Não sei o que será melhor, se um sol que fere a vista, céu azul, essas coisas limpas de que toda a gente gosta muito, ou um pavor cinzento preto, raios lá ao fundo, trovões a abanar o carro, uma catarata no vidro. Neste caso o problema é que posso não ver bem. E o que eu quero nesta situação é ver bem.
Imagino que me aproximo num repente, ponho-me mesmo atrás daqueles manos muito confiantes, montados num modelo de estreia, matrícula deste mês, um porradão de cavalos, uma merda no ouvido para atender o telefone, o casaco pendurado atrás, camisinha e gravatinha, a despacharem serviço, a atenderem muita chamada ao mesmo tempo, a dizerem a todos ao mesmo tempo
dá-me só um segundo não desligues dá-me só um segundo
um gajo igual a tantos outros que são iguais a tantos outros, que são afinal todos iguais e não se importam, que fazem aliás por serem iguais uns aos outros, e por serem todos iguais quem é que há-de dar pela falta dele, daqui a nada aparece outro igualzinho, e depois outro e assim por diante.
Manos que nascem do chão como cogumelos.
E é isto que pode fazer-me hesitar.
Porque não sei se me apetece levar comigo um bacano que podia ser outro qualquer, pode não ser uma ideia que deixe mossa, levar um destes, igualzinho ao de ontem e ao de amanhã.
Cogumelos. Trevo daninho que come a relva.
Vantagem: ninguém há-de dar pela falta dele.
Desvantagem: ninguém há-de dar pela falta dele.
Já viste como o medo nos dá para querer-mos magoar?
E a tentação de querer-mos foder um cogumelo destes. Colo-me atrás dele uns quilómetros, o gajo olha pelo retrovisor, pensa
tu queres ver este
ou então
passa lá pázinho não me chateies que tenho muita chamada para atender
o mais certo é reduzir, diz espera só um bocadinho e para a outra chamada em espera a mesma coisa, dá-me só um bocadinho para despachar aqui um esperto, mal ele sabe o que diz, despachar um esperto, mal ele sabe, por mais que acelere eu sempre atrás, a medir-lhe a nuca e os olhinhos no retrovisor, e o casaquinho a abanar por trás dele, para não se amachucar, pensado bem vai já este, atiro-me para o lado dele sem pisca, olho bem para ele, igualzinho ao que passou e ao que há-de passar, não há-de vir daqui mal ao mundo, altruísta eu, não sei se é esta a palavra mas gosto dela, uso-a aqui, gosto, sinto-me, enfim, até um gajo porreiro, porque me dou ao trabalho de estar sempre a pensar no contexto todo.
Uns bons metros ao lado dele, quero que ele me veja bem, quero vê-lo bem, nem sonha que eu estou a dizer
és tu, és já tu, vais tu e é já
sorrio-lhe?
se calhar sorrir é maldade a mais
então está bem, sorrio-lhe
aí vai um cogumelo, um tufo de trevos que anda a comer a relva, de onde veio este hão-de vir mais, olha para mim sem saber que é a última vez que oolha, é isto que quero, olha para mim e despede-te, pá, não digas à secretária é só um bocadinho já te atendo, não ponhas o sócio em espera que já não voltas.
Poder.
Agora.
Com os carros perfeitamente alinhados, ele sem saber se acelera para me fugir, se desacelera para me deixar passar.
Agora.
Sorrio. Não me ocorrem últimas palavras. Quero resolver isto antes daquela curva lá em cima. Aqui é bom, há um rio lá em baixo. Aperto o volante. Imagino que o volante é um pescoço.
Tudo para a direita. Dá tempo para lhe ver a cara.
E ele
Olha-me este. O que é isto. Então então. Ai meu Deus.
Agora é que vamos ver se é como dizem, se pela cabeça nos passa toda a vida num repente. Espero ir suficientemente depressa. Vou.
Nem tempo para travar. Ele agarra o volante, abre muito os olhos. Isso, cogumelo, olha bem. Eu agarro o volante como um pescoço, ele pensa que está a agarrar alguma coisa que o salve, a coisa que tem mais à mão. Não, rapaz, não é um pesadelo. É mesmo.
Agora.
Ou então."
Excerto de "Canário" de Rodrigo Guedes Carvalho
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