23 de julho de 2010

De pé sobre o parapeito sentes-te instável acima da rua quase deserta.

A adrenalina que te enche as veias ao olhar o asfalto a partir do último andar é semelhante à do gajo que conduz o Honda negro que rola a 150 km/h.
150 km/h e desce a avenida.
150 km/h e aproxima-se da rotunda.
150 km7h e perguntas-te quantos cavalos o puxam. Nunca percebeste nada de carros. Ele deve saber.

Para ambos, o abismo.
De um segundo para o outro os ossos podem quebrar como palitos ao embater na superfície dura e fria. Como um palito. Tão frágil como um palito

O alcatrão negro, com as marcas de sinalização desgastadas, clama por ti da mesma forma que o muro da escola incita o condutor a largar o travão.
Imaginas se pudessem falar. Porque não falam os objectos?

Por momentos perguntas como seria dar um passo em frente.
No Honda o gajo questiona se valerá ou não a pena libertar o travão. Se valerá a pena pressionar o acelerador.

A adrenalina é suave. Suficiente para tornar as luzes dos candeeiros tão intensas que começam ambos a ver a cidade desfocada. Tão intensas que são flocos de neve amarelos como mostarda.

O som do motor multiplica-se e ecoa em todos os prédios.
Sentem as mãos suadas. O gajo do Honda teme que o volante lhe escorregue das mãos. Tu temes que as mãos com que te agarras ao rebordo metálico se libertem.

Neste instante, que não dura mais de alguns segundos, trocam de papéis.
O rapaz do Honda imagina-se metros acima do asfalto no peitoril de uma janela sentindo o vento gelado na face.
Tu, sentes a velocidade de um carro descontrolado.
Imaginas como seria entrar na mente de alguém em plena adrenalina.
De que cor é o sangue descontrolado pela emoção?

A morte assim tão perto.
O momento exacto em que podes escolher se vives.
E lembras-te que deixaste a aparelhagem ligada.

“Enjoy this moment”, ouves ao longe.
“Let it fall, let it fall”, repete o rádio provocando-te.

O momento em que decides a tua própria vida como nunca.
Em frente ou recuar.
A curiosidade de experimentar o desconhecido fervilha nas veias.

Levantas o pé alguns centímetros só para gozar um pouco com o teu corpo, para o desafiar.
No Honda, o rapaz larga só um pouco o travão.

A emoção.
A adrenalina.
O sangue palpita nas veias mais depressa do que a luz atravessa o espaço.
Na mente, o ser e o não ser.

De repente, ouves o chiar dos pneus no asfalto.
Sentes o cheiro intenso da borracha a arder no alcatrão velho.

O atrito a salvar uma vida.
O atrito a salvar duas vidas.
Desces do parapeito.

Nem um nem o outro teve a coragem de sentir o desconhecido.
Nem tu, nem ele.
Ao contornar a rotunda os faróis do Honda encandeiam-te.

Os teus olhos e os faróis do carro.
Sintonia perfeita.

A palavra cobarde brilha na intensidade da luz.
Pensam o mesmo.
Um dia a escolha deixa de ser tomada por vocês: os travões falham e desequilibras-te.

Nesse dia conheces o sabor do sangue no asfalto.
O som do estalar dos ossos na superfície mais dura.

Nesse dia ele conhece o sabor do sangue no cabedal do volante.
O som do estalar dos ossos na superfície mais dura.

Nesse dia conheces o sentido mais puro do verbo voar.
A dúvida da sobrevivência.

Nesse dia ele conhece o sentido mais puro do verbo largar.
A dúvida da sobrevivência.

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